A Linha de Sombra, de Joseph Conrad – Traduções comparadas, 2ª parte

Seguindo com a comparação das traduções de “A Linha de Sombra”, de Joseph Conrad, trago agora um dos meus trechos preferidos, que narra o momento em que o personagem descobre a sua vocação.

Se ainda não leu a 1ª parte, leia aqui.


 

Capítulo II

ScreenClip
Texto original

 

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Tradução Maria Antonia Van Acker

 

ScreenClip [3]
Tradução Julieta Cupertino
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Tradução Guilherme da Silva Braga

 

ScreenClip [2]
Tradução Maria Teresa Sá e Miguel Serras Pereira
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  • O narrador compara o seu navio a uma princesa encantada, mas por algum motivo Julieta Cupertino traduziu princess para príncipe.
  • Compare as traduções da frase “Her call had come to me as if from the clouds”:
    • “Seu chamado me chegara como que vindo das nuvens.” (Van Acker)
    • “Seu chamado havia vindo até mim, como se viesse das nuvens.” (Cupertino)
    • “O chamado da princesa veio até mim como se descesse das nuvens.” (Braga)
    • “O seu grito que me chamava viera ter comigo como que das nuvens.” (Sá e Pereira)

Qual delas você prefere? As minhas preferidas são a dos tradutores portugueses e a de Van Acker. Acho a de Cupertino muito feia, com essas aliterações do V e a repetição do verbo vir: “haVia Vindo até mim, como se Viesse das nuVens.” Braga especificou que o chamado era da princesa, mas eu julgo que o narrador estava se referindo ao navio – em inglês, navio (ship) é uma palavra feminina, por isso o uso do possessivo her. Na verdade, esse aspecto ambíguo (o chamado era do navio ou da princesa?) me parece proposital, para manter até o fim do parágrafo a analogia entre eles. As outras três traduções conseguiram manter essa ambigüidade utilizando o possessivo seu, que não indica o gênero do possuidor, não precisando declarar, assim, se falavam da princesa ou do navio.

  • Há mais material interessante neste trecho para fazer o que fiz acima – cotejar todas as traduções de uma mesma frase. Por exemplo, a primeira oração do segundo parágrafo (“A sudden passion of anxious impatience rushed through my veins…”), ficou muito mais fluida na tradução de Sá e Pereira: “Um acesso repentino de exaltada impaciência fez-se sentir nas minhas veias…”. (Infelizmente, a segunda oração ficou confusa, com a tradução de existence para ser, a idéia de intensidade associada à sensação, ao invés de à existência, e a omissão do fato de que aquela sensação não se repetiria mais em sua vida.)

Experimente fazer esse mesmo exercício com a terceira frase deste trecho, que começa com “She was mine…” (“Ele era meu…”, ou “Seria meu…”).


Terminologia náutica

Neste livro Conrad utiliza muitos termos técnicos de navegação, como nomes de partes do navio e de manobras executadas pelos marinheiros. Das quatro traduções que estamos comparando, apenas a de Sá e Pereira (ao menos na versão que estou utilizando) não possui um glossário para auxiliar na compreensão desses termos. Das outras três, a que possui o glossário mais completo é a de Guilherme da Silva Braga, que realizou uma extensa pesquisa terminológica antes de traduzir o livro. Sobre essa questão, recomendo muito a leitura de seu trabalho intitulado “O tratamento literário da terminologia náutica em uma nova tradução de The Shadow Line, de Joseph Conrad”. Reproduzo em seguida um trecho desse trabalho, em que Braga mostra como o desconhecimento de termos técnicos pode gerar terríveis erros de tradução:

Tomemos como primeiro exemplo o seguinte trecho do original de Conrad:

It was like fighting desperately toward destruction for the ship and the men. This was evident without argument. Mr. Burns, losing all restraint, put his face close to his captain’s and fairly yelled: “You, sir, are going out of the world. But I can’t wait till you are dead before I put the helm up. You must do it yourself. You must do it now!”

The man on the couch snarled in contempt. “So I am going out of the world–am I?”

“Yes, sir–you haven’t many days left in it,” said Mr. Burns calming down. “One can see it by your face.”

“My face, eh? . . . Well, put up the helm and be damned to you.”

Julieta Cupertino traduz assim:

Estavam lutando desesperadamente contra a destruição – do navio e dos homens. Era indiscutível. Mr. Burns, perdendo toda a reserva, pôs o rosto junto do rosto do capitão e gritou abertamente: “O senhor, comandante, está deixando este mundo. Mas eu não posso esperar até que o senhor esteja morto para assumir o comando. É o senhor, pessoalmente, quem deve fazer isso. E deve fazê-lo agora!”

O homem na cama rosnou, em desprezo. “Então, eu estou deixando este mundo… estou?”

“É verdade, senhor… Não lhe sobram muitos dias nele”, disse o Mr. Burns, acalmando-se. “Basta olhar para o seu rosto.”

“Meu rosto, hein?…Bem, assuma o comando e se dane.”

No trecho em questão o sr. Burns, imediato do navio, reclama do que julga ser um projeto insano da parte do capitão: avançar em direção a Hong Kong contra uma forte monção, sem o lastro adequado e sem a necessária provisão de água potável. O sr. Burns suspeita que o capitão, às portas da morte, esteja envidando todos os esforços possíveis para afundar o navio e matar consigo toda a tripulação, mas não se conforma e confronta-o: “I can’t wait till you are dead before I put the helm up”. O termo helm refere-se, naturalmente, ao leme do navio, e a operação put the helm up corresponde, em português, a meter o leme de encontro, o que faz com que o navio arribe, isto é, passe a navegar em um rumo mais favorável ao vento que sopra. Assim, o que o imediato expressa é a necessidade de arribar imediatamente (“I can’t wait till you are dead…”), o que efetivamente resolve uma das três dificuldades que a tripulação do navio enfrenta.

A idéia de um superior oferecer o comando a um subordinado, tal como a tradução de Cupertino sugere, parece no mínimo inusitada, bem como o pedido desesperado do subordinado para que o capitão assuma o comando – posição esta que por definição lhe cabe.

Se você, como eu, não entende de navios e continua perdido mesmo com o auxílio de um glossário, acho que esta página pode lhe ajudar.


Conclusão

A tradução de Julieta Cupertino mostrou-se inferior, pelos erros de tradução e pelo estilo sofrível. As outras três me parecem de qualidade equivalente, mas destaco a boa escrita de Maria Teresa Sá e Miguel Serras Pereira e a precisão de Guilherme da Silva Braga no uso dos termos náuticos.


 

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2 comentários em “A Linha de Sombra, de Joseph Conrad – Traduções comparadas, 2ª parte

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  1. O modo como ele fala do navio é como se fala de uma mulher com que tivesse algum tipo de relação romântica. Toda a escolha vocabular se concentra nisso (“mine, care, devotion, princess”, “possession” chega a evocar algo sexual).O que eu teria feito de diferente é evitar a tradução óbvia de ship. Porque se você usa navio, todas as palavras que se referem a ele ficam no masculino. Sim, ship é navio. Mas teria sido melhor ter usado ao menos na segunda ocorrência uma palavra feminina. Isso permitiria que todo o trecho transmitisse com mais força a ideia principal do trecho. Bastava “Um navio, a minha nau!” Compare a força de “meu, completamente meu” para gerar esse efeito com “minha, completamente minha”. Às vezes, uma imprecisão pontual pode possibilitar uma precisão mais global do trecho. Outra coisa é que prefiro manter as metáforas. Sink era para ter sido traduzido literalmente, não precisava ter explicado, até porque os dicionários registram o sentido de afundar como frustrar-se, malograr-se, sair-se mal etc. e navegar seria plenamente entendido como o contrário disso.

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