Nem tudo que reluz é ouro
O primeiro livro que vou abordar aqui é Lord Jim, de Joseph Conrad. Mas, antes de comparar as três traduções brasileiras, vou me deter um pouco na de Mário Quintana, por uma triste razão: a versão do poeta gaúcho é resultado de uma severa mutilação do texto original.
Nem mesmo sei se é exato chamá-la de “tradução”; acredito que mais correto seria “adaptação”. Fiz um levantamento detalhado de todas as omissões dos doze primeiros capítulos (o livro tem 45) e cheguei ao número de 16,22% de cortes em relação ao original. Mesmo sem a mesma minúcia, não é difícil encontrar capítulos reduzidos a menos de 50%, como, por exemplo, os capítulos XIII e XXXIV (este não chega nem mesmo a um terço de seu tamanho original).
Talvez alguém aí esteja pensando “vai ver o Mário quis tirar as partes chatas e sem importância do livro, pra ficar mais fácil”. Esse tipo de prática (retirar e modificar trechos para facilitar a leitura) é comum em adaptações destinadas ao público infanto-juvenil, mas é inaceitável quando se trata de uma suposta tradução. Mesmo que todos os trechos omitidos fossem chatos pra burro e sem qualquer importância aparente, tal atitude não se justificaria. Afinal, se o autor escreveu, é porque tem alguma relevância. De qualquer modo, nesse caso não se tratam de trechos chatos ou irrelevantes. Há, por exemplo, um marinheiro francês muito interessante que aparece nos capítulos XII e XIII, cuja descrição e história são drasticamente resumidas, deixando o leitor sem a percepção do contraste entre esse personagem e Jim. Muitas reflexões de Marlow, o narrador da maior parte da história, também foram eliminadas. A sua empatia por Jim, causada pelas lembranças de suas próprias ilusões de juventude, praticamente desaparece do capítulo XI, bem como toda a sua aflição após a conversa com Jóia, no capítulo XXXIV, que permeia um longo trecho. Mas o mais lamentável de todo o livro, em minha opinião, é o capítulo XX. Considero-o importantíssimo, tanto por sua beleza, como pelas considerações de Stein a respeito de Jim (e de todos os homens, na verdade), e por ser o capítulo que marca a virada da história. Na tradução brasileira, o capítulo tornou-se apenas uma breve apresentação de Stein, perdendo muito de sua importância: a história da captura da borboleta foi muito resumida, e da longa e interessantíssima conversa entre Marlow e Stein não restou quase nada.
A beleza e a fluidez da escrita de Mário Quintana, a própria autoridade que carrega o nome do poeta gaúcho, o fato de essa ser a tradução de Lord Jim com maior número de edições no país: acredito que esses fatores tornam ainda mais surpreendente e triste o que foi feito com o romance de Conrad. Ficamos, assim, com a pergunta: qual será o motivo dessa mutilação? Alguém aí tem alguma pista?
A cena da caçada da borboleta e a conversa entre Marlow e Stein foi possivelmente o trecho de que mais gostei no livro todo!
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Também acho esse o melhor capítulo do livro. É triste pensar quanta coisa boa os leitores estão perdendo com traduções assim…
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Quais editoras publicaram essa tradução? Sei que a Martin Claret, na época sombria, publicou-a. Pergunto isso porque às vezes isso tem mais dedo da editora do que do próprio tradutor!
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Agora é que eu vi que essa informação das edições é indicada na 2ª parte desta série. Apenas então para confirmar: os cortes são de todas as edições mesmo? É uma pena e, sinceramente, deveria ser obrigada por lei a indicação de “obra adaptada” ou “versão compacta” desde a capa.
Uma vez eu me deparei com caso assim em um PDF misterioso de “A Ilha Misteriosa”, do Júlio Verne, que encontrei na internet. Li tudo e só depois, comparando com o francês e cotejando com a bela edição da editora Jorge Zahar, é que descobri que era uma versão inteira cortada, não apenas sem parágrafos inteiros, mas também sem episódios inteiros.
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Acredito que sim, Leonardo. A primeira edição, da editora Globo, já tem esses cortes.
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